REGISTRO 02, CAPÍTULO 01
— Corre! Liga o carro! Rápido, vamos! – gritava Alex, enquanto atirava da melhor maneira que podia contra uma multidão de seres humanóides, de pele cinza arroxeada, em estado avançado de decomposição. Os projéteis zuniam pelo ar, alojando-se nos corpos das criaturas, que caíam sem emitir som algum em meio à horda que se aproximava a cada instante.
No controle do veículo, Ron, ás do volante, tinha sérios problemas com a ignição de sua XTerra modificada, carinhosamente apelidada de “Bone Crusher”. Aparentemente, o carro estava sem gasolina.
— Como pude me esquecer? – gritou Ron – Que erro primário! Alex! Me dê cobertura! Tenho que girar a válvula de fornecimento de combustível!
— Você está louco? Nós vamos morrer! – grita Alex em resposta, com um sorriso no rosto.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 02
Literalmente feita por Ron enquanto estava em seu abrigo, logo após a catástrofe; montada com partes de carros velhos e motores abandonados. A XTerra foi seu último projeto.
Estimulado por seu pai, que saía todos os dias para observar a situação climática e atmosférica da área e, quando voltava, trazia algumas novas peças que encontrava pelo caminho para o garoto de dezesseis anos fascinado por mecânica. Em seis meses de isolamento, dedicando-se completamente a seus carros, Ron terminou seu primeiro projeto: um pequeno bugre, com um motor de 20HP de força, movido à gasolina, que era obtida de outras carcaças. Assim que pronto, passou a ser o transporte de seu pai, em suas saídas cada vez mais constantes.
A primeira adaptação surgiu com a necessidade de alimentos. Ron instalara uma grande caixa de metal, soldando-a ao fundo do carro, para que seu pai armazenasse e trouxesse toda a comida que encontrasse e, eventualmente, mais peças. E assim seguiam-se os dias.
O pai de Ron ia cada vez mais longe de seu abrigo, movido pela curiosidade e em busca de comida; no entanto, ninguém sabia que ele se distanciava gradativamente, dia a dia. Até que, depois de algumas semanas, ele decidira contar à família até onde ia. Todos ficaram preocupados, mas Ron viu, nesse risco, a possibilidade de finalmente abandonar seu abrigo, mesmo que por pouco tempo, porém, frequentemente. Ofereceu-se para ir com o pai, para o caso de as coisas piorarem. Quase mata sua pobre mãe com o choque.
Alguns dias após o susto, ela começa a pesar os fatos. Eles estão ali há, no mínimo, um ano. Um ano sem ver a luz do Sol. Um ano trancados dentro de um porão cinzento. Ela então consente que o garoto vá com o pai, mas apenas com a condição de que eles usem um transporte mais seguro. A partir desta data, Ron e seu pai se empenham exclusivamente nessa tarefa. Eles são forçados a comer farofa de ovo sintético devido à falta de esforço de Michael, pai de Ron, em procurar comida quando saía. Ovo sintético é uma das piores coisas criadas pela humanidade em seus tempos de glória. “De onde havia surgido a idéia de tornar tudo sintético?” – pensavam todos, enquanto saboreavam a iguaria insossa por vários dias seguidos.
Michael adiantava o projeto trazendo o máximo de peças que coubesse no pequeno bagageiro do bugre, que rangia e chiava emitindo incômodos ruídos agudos. No caminho de volta para o abrigo, ele sempre olhava em busca de carros abandonados nas ruas para roubar-lhes a gasolina. Aqueles que não tinham combustível eram reconhecidos imediatamente, pois, apenas Michael andava naquela região, então facilmente se lembrava de quais carros ele já havia pegado combustível.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 03
Um mês de trabalho dedicado, e estava pronto o novo veículo de transporte, ou “Street Shark”, como fora batizado devido à sua aparência. O carro em si lembrava muito pouco um tubarão, porém, a grande e saliente antena de comunicação se assemelhava bastante à barbatana do animal. Essa antena, combinada ao sistema instalado no carro por Ron, tornava possível comunicação imediata entre o esconderijo e o veículo. Movido por um poderoso, e raro, motor de 100HP de força, o pequeno automóvel podia ir de zero a oitenta em apenas sete segundos, o que aumentava as chances numa possível fuga.
Aprovado pela mãe, embora não totalmente, Ron podia agora sair do porão com seu pai para buscar alimentos. Devido à escassez de gasolina, eles iam de carro até um ponto de fácil localização e exploravam alguns dos quarteirões vizinhos a pé, removendo o sistema de comunicação do Street Shark para o caso de precisarem falar com a base.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 04
Durante o inverno a situação vinha se tornando gradativamente mais complicada. A comida das redondezas havia sido toda recolhida e armazenada no porão. Também não existiam mais carros com gasolina nas proximidades, e, ainda havia a neve e o gelo, que pioravam as condições de direção.
As saídas se tornavam cada vez mais raras, e o combustível tinha que ser mantido em temperaturas mais amenas, sendo ainda dividido com um aquecedor que eles haviam encontrado num velho apartamento, sem o qual, morreriam congelados.
Até que, num dia cinzento, frio e nublado, o estoque de alimentos acabara em absoluto. Ron e Michael preparam o carro para uma grande busca, na qual eles se empenharão até o anoitecer. Abastecem o Street Shark com todo o combustível restante, calculam a distância que eles podem percorrer – Cinqüenta e quatro quilômetros, vinte e sete na ida, a mesma distância na volta – e partem.
Ao sair do porão eles mal reconhecem o ambiente à sua volta. A neve cobre árvores, praças, carros e casas, e as ruas estão completamente congeladas. Aparentemente, a distância a ser percorrida de carro será bem reduzida. Eles vão reconhecendo os caminhos em meio à neve, e, quando o combustível se aproxima da metade, eles param e descem. Ron se dirige para o tanque do veículo, para recolher o combustível restante e levá-lo com eles, enquanto isso, seu pai se ocupa em remover o sistema de comunicação. Deste ponto em diante irão a pé.
Eles andam durante longas horas sem descansar, até sair de sua área conhecida, movidos pelo desespero de obter comida suficiente para sobreviverem ao resto do inverno. Usando um papel velho, fazem desenhos que esboçam um mapa da região, para não esquecerem o caminho de volta.
Algumas horas depois eles avistam, no alto de um prédio, uma varanda iluminada. Correndo em sua direção, adentram o edifício e, distraidamente, chamam o elevador.
O hall do prédio está bem conservado, exceto pela gigantesca quantidade de neve que se amontoa disformemente na entrada. Há algo que aparenta ter sido um espelho, quebrado, e cujos fragmentos se espalham pelo chão, misturados com papéis velhos molhados. Uma porta dá acesso às escadarias, enquanto que o elevador se encontra diretamente em frente à entrada, onde eles estão agora.
Quando se lembram da catástrofe e ausência de água, luz e comunicação, eles se dirigem para a escada. Ao abrirem a porta para começar a subir os quarenta e dois lances de degraus, o elevador emite um estalido metálico que os faz parar imediatamente. Ao virarem-se, vêem a porta metálica abrir com dificuldade. Depois de discutir a situação brevemente, considerando a exaustão física de ambos, eles decidem arriscar e ir pelo elevador.
Ron e Michael adentram a caixa metálica e apertam o botão, já bastante gasto, correspondente ao 14º andar. Uma pequena luz se acende, mas momentos se passam sem que nada mais aconteça.
— Droga! – resmunga Michael, enquanto bate de mão fechada na parede metálica – eu sabia que estava muito fácil…
Ao fazer isso, a porta se fecha com estrondo e os cabos de aço começam a se mover lentamente.
Depois de vários minutos sufocantes, presos no invólucro de metal, eles chegam ao andar desejado. O corredor com doze apartamentos está completamente deserto, e todas as portas estão fechadas, à exceção de uma. A madeira se encontrava na parede oposta à do vão, arrancada das dobradiças, e partida ao meio por uma poltrona rasgada, que ainda se encontra ali. Há papéis espalhados pelo chão, aparentemente saídos do apartamento aberto, e um forte vento gelado. Ao se aproximarem da porta aberta, que, não coincidentemente, corresponde à do apartamento de luz acesa, eles percebem que uma terrível nevasca começara enquanto estavam presos no elevador. Eles vêem que não apenas a luz da varanda continua acesa, mas também todas as outras do apartamento. Os móveis se encontram espalhados de forma estranha, como se o local houvesse sido palco de uma briga violenta. Há mais papéis espalhados, em meio a grandes cacos de vidro tingidos de vermelho, aparentando sangue seco.
Todos os cômodos estão abertos e bagunçados, mas não tanto quanto a sala. Há apenas uma porta trancada, que, de acordo com os cálculos de Ron, deve ser a cozinha.
Ele bate na porta e grita:
— Tem alguém aí?
Nenhuma resposta.
Ele torna a bater e gritar. Não obtendo resposta mais uma vez, chama o pai e pede ajuda para abrir a porta. Este, com um extintor de incêndio nas mãos, se aproxima e atinge a maçaneta violentamente com o objeto, quebrando-a em pedaços inúteis de metal. A porta se abre com um rangido atemorizante.
Ainda com o extintor, Michael adentra o recinto, cujas luzes estão apagadas. Ron entra tateando pelas paredes e encontra o interruptor para acender a luz. Michael, assustado pela cegueira e brilho repentino, sacode o extintor em todas as direções com intuito de se proteger, e acaba atingindo um objeto em cheio. Objeto este que depois se verifica ser uma geladeira. Os dois começam a rir do susto e sentam-se no chão, estupefatos com enorme quantidade de comida armazenada ali.
— Parece que nosso anfitrião era precavido! – brinca Ron.
Eles olham para suas modestas mochilas, em seguida para a grande quantidade de comida. Sem dizer uma palavra sequer, separam-se pelos quartos, procurando bolsas maiores.
Enquanto procura no quarto mais distante, Ron ouve passos apressados pela sala, porém, ao se dirigir para lá, não encontra nada aparentemente diferente do que estava. Seu pai chega instantes depois, perguntando porque ele o chamara.
— Mas eu não lhe chamei! – retruca Ron – Vim aqui porque pensei ter ouvido passos.
Ambos voltam às suas buscas, remexendo os armários e estantes da casa. Michael encontra três malas, grandes o suficiente para carregar quase toda a comida da cozinha. Ao chegar lá, percebe que algo aconteceu nos instantes em que eles saíram para procurar as bolsas maiores. Há latas e sacos espalhados para todos os lados, e vidros de café preto quebrados, com seu conteúdo derramado. Ron chega com uma mala tão grande quanto as outras, e fica aturdido com o estado do cômodo em que eles estavam há poucos momentos.
— O que aconteceu aqui?
— Não faço a menor idéia – responde Michael – melhor a gente empacotar tudo e sair daqui o mais rápido possível.
Eles vão jogando a comida dentro das malas de forma desorganizada, porém eficiente, fecham os zíperes, e, quando já estão quase na porta, são atingidos por uma lufada de vento gélido, proveniente da varanda. A terrível nevasca ainda não terminou, nem dá sinais de enfraquecimento durante as próximas horas.
Como já está anoitecendo, decidem passar a noite ali mesmo. Michael leva as malas de volta para a cozinha, enquanto Ron tenta se comunicar com sua mãe para avisá-la sobre a mudança de planos. No entanto, a tempestade está tão forte que o rádio não consegue captar nem emitir nada além de chiados incompreensíveis.
Michael retorna. Desta vez com uma lanterna.
— Vamos dividir em dois turnos. Primeiro você dorme, enquanto eu vigio, e, à meia noite, nós invertemos.
— Ok – concorda Ron, enquanto arruma alguns papéis e sacos plásticos para usá-los como travesseiro.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 05
— Acorda Ron! Conserta logo essa droga! Eles estão chegando perto! – são os gritos de Alex que tiram Ron de suas lembranças.
— Já está quase! Só mais alguns segundos. Um… Dois… Pronto! – grita Ron em resposta, enquanto volta para a cabine e gira a chave na ignição.
O motor entra em funcionamento, e o carro começa a se deslocar com grande velocidade. Alex, equilibrada sobre o teto, quase é arremessada para a traseira do veículo devido à forte arrancada. Ela entra pela janela do carona, recarregando a pequena submetralhadora que já os salvou tantas vezes.
— Demorou dessa vez, hein? – fala Alex em tom de brincadeira.
— É. Tinha me esquecido de ativar o tanque secundário quando saímos – responde Ron, bem humorado, uma vez que o carro funciona perfeitamente.
O grande off-road percorre as ruas desertas de mais uma cidade. A terceira só nesse mês. A eterna busca por comida e outros sobreviventes fora o que os unira tão fortemente no princípio.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 06
Ron acorda com um ruído estranho vindo da sala. Deitado nos papéis ele pode ver o facho de luz da lanterna se movendo rapidamente em várias direções. Algo muito estranho está acontecendo. A nevasca já parou, porém, os ruídos aumentam de volume e freqüência. Ron olha seu relógio de pulso. 23:30h. Ele se levanta e vai em direção à sala, no caminho para a porta, ele incautamente chuta um vidro de café quebrado. Os ruídos da sala param imediatamente, e o facho de luz é apontado diretamente para a porta da cozinha e pára.
— R-ro-ro-Ron? – é a voz de Michael, bastante nervosa – Fi-filho, não saia daí! Ele… ele está no vão entre a porta… entre a porta e o teto!
Ron olha atentamente para o pedaço de parede que fica entre a porta e o teto e percebe uma garra verde enegrecida. Algo lembrando um grande, um gigantesco inseto. Congelado pelo medo, Ron corre os olhos pelo aposento em busca de algo que possa ser usado como arma.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 07
— Pai, está vendo a luz? – neste momento, um ponto vermelho surge na parede oposta à porta da cozinha – vou tentar levanta-lo com uma velocidade quase constante, quando estiver apontado para a criatura, pisque a lanterna!
O ponto de luz vermelha vai subindo lentamente pela parede, em direção ao teto. Michael observa pacientemente até o ponto desaparecer de sua visão, ficando na parte de parede entre a porta e o teto pelo lado de dentro da cozinha, oposta à parede do monstro. Ele pisca a lanterna. A criatura move a cabeça em sua direção, mas, interrompe o movimento no meio, tendo sua atenção atraída de volta para a cozinha, de onde vem um arranhar de metal contra metal, seguido por um grande estrondo. Milésimos de segundo após o som, a parede explode em poeira e entulho. A criatura, atingida em seu ponto vulnerável, o ventre, é estourada, e sua carcaça é arremessada na parede oposta, sujando todo o apartamento com uma gosma pegajosa e esverdeada.
— Acho que acertei – diz um Ron sorridente, recém saído da cozinha, com uma mala em uma das mãos, e uma pesada escopeta calibre 12 com mira laser na outra – vamos sair daqui AGORA!
— Por um momento eu pensei que fossemos morrer! – Michael fala, ainda atônito com o disparo, – acho que vamos ter que deixar uma mala para trás… Eu não volto aqui de jeito nenhum!
Ele adentra a cozinha, pega mais duas malas e segue Ron, que já está na metade do corredor, em direção ao elevador.
— Acho que a lanterna o atraiu, ele entrou pela varanda – vem explicando Michael, quando percebe que Ron está parado, a mala no chão, alguns metros atrás, e o ponto vermelho da mira se move próximo à porta do elevador. A arma é disparada, Ron recua assustado, recarrega e dispara novamente. O estampido enche os ouvidos de Michael, seguido pelo silêncio absoluto. O rapaz se volta para o pai perguntando:
— E aí? Será que dá pra agüentar esse cheiro, ou vamos pelas escadas?
— Pelo menor caminho possível, mesmo que tenhamos que suportar o fedor.
— Se você faz questão – resmunga Ron, enquanto arrasta a mala para dentro da caixa metálica.
Ao chegar lá, Michael se arrepende de suas palavras, mas não muda de decisão. O ambiente agora tem um cheiro forte de metano, as paredes estão completamente imundas, o líquido verde está espalhado para todos os lados, inclusive no teto. A carcaça da criatura está relativamente inteira.
Descendentes dos primeiros seres infectados com a Mattis Imortum, os insetos foram os que mais se desenvolveram nos anos em que a humanidade se escondia. Diversas espécies surgiram, outras tantas desapareceram. Umas eram mais raras, enquanto outras são comuns, como a criatura morta. Possuidores de exoesqueleto resistente e pontiagudo; três pares de patas e uma grande garra assemelhada a um ferrão; esses seres têm apenas dois pontos fracos: o ventre e a cabeça.
Há uma grande cratera em seu dorso, onde atingiu o primeiro tiro, que não foi capaz de matá-la, e não há cabeça. Esta foi destruída completamente pelo segundo disparo, deixando apenas uma massa heterogênea de gosma e pedaços de casco.
Eles apertam o botão do térreo, e, quando a porta já está quase se fechando, Ron se lembra do mapa, uma vez que está totalmente escuro lá fora.
— Pai, você pegou o mapa?
— Droga! Sabia que estava me esquecendo de algo… Espere aqui que eu volto em um instante.
— Melhor eu ir com você…
— Não, não é necessário. O mapa está em cima da mesa. Me espere.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 08
Assim que seu pai parte em direção ao apartamento, Ron pensa ter ouvido um bater de asas, que o deixa nervoso. Ele segue seu velho com os olhos, pronto para qualquer emergência. Michael entra no apartamento, saindo do campo de visão de Ron.
Um grito aterrorizante faz seu coração disparar. O sangue começa a correr mais rápido, seu cérebro joga adrenalina na circulação. Isso não leva mais do que meio segundo.
Chutando uma mala para prender o elevador, ele corre em direção à porta, mas, quando já está quase lá, um corpo é arremessado com violência através do vão da porta, aterrissando sobre a poltrona em frangalhos. Ron corre ainda mais. Apenas para ver a criatura sair pela porta e dirigir-se para o corpo inerte. Com uma garra afiada, ela o atravessa, na altura do estômago, fazendo o sangue jorrar nas paredes mais próximas.
— Não! Desgraçado! Você o matou! – Ron grita enquanto corre, mirando na criatura.
Dois disparos refazem o silêncio. O corpo da criatura é arremessado próximo do fim do corredor, jazendo sem vida. O rapaz ainda tenta acordar seu pai, mas, logo percebe que não há condições; sua garganta está cortada, e a garra da criatura ainda está fincada em seu estômago, que formou uma enorme poça de sangue no chão.
Entrando no apartamento, Ron logo avista o mapa, na metade do caminho para a porta, agora todo ensangüentado, porém ainda legível. Verificando a arma, descobre que esta tem apenas mais três balas, e resolve procurar mais algumas, no último armário da cozinha, onde ele encontrara a escopeta. Lá ainda há uma caixa, pela metade, contendo seis cartuchos, os quais ele recolhe e coloca na arma, cuja capacidade é de até dez projéteis. Ele também encontra outra caixa, mas a munição pertence a uma arma diferente, que não está ali. Recolhendo essa munição e metendo-a na mochila, ele volta para o elevador, e desce até o térreo, preparando-se para a terrível viagem de volta.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 09
Quando as portas do elevador se abrem, Ron descobre que sua viagem será MUITO mais complexa do que ele esperava. A saída está coberta por uma parede de neve. Ron conclui que não terá a menor condição de levar consigo sequer UM daqueles malões recheados de comida. Ele improvisa um pequeno espaço em meio a toda a neve e gosma dentro do elevador para abrir as malas. Escolhendo apenas os alimentos mais nutritivos e energéticos, os enfia em sua mochila, que agora contém também a munição desconhecida, o combustível restante do carro e o sistema de comunicação. O mapa ele coloca no bolso da calça, para fácil acesso.
Forçando sua passagem através da barreira gelada, Ron consegue chegar até o vão central do hall, onde a neve está em níveis mais baixos, na altura de seus joelhos. Se orientando através do mapa parcialmente destruído pela água, ele memoriza o caminho até o carro e sai do prédio. A escuridão é completa. Ligando a lanterna para poder enxergar, Ron percebe que a nevasca modificou todo o ambiente à sua volta, tornando o caminho impossível de ser lembrado, e fazendo necessária uma constante verificação no mapa. Segurando-o juntamente com a lanterna e com a escopeta a tiracolo, ele vai iluminando os letreiros dos prédios para encontrar o caminho.
Depois de percorrer incontáveis ruas ele vê vultos se movendo ao longe na névoa. Ron corre em sua direção, porém, ao aproximar-se o suficiente para vê-los claramente, percebe que há algo muito estranho com seu estado físico. Os três seres estão vestindo roupas velhas, rasgadas, e que, definitivamente, não se adequam à temperatura atual. Sua pele é acinzentada, seus movimentos são rígidos e exagerados. Um deles não possui cabeça, enquanto que outro possui apenas um braço. As criaturas ignoram Ron completamente, parecendo não enxergá-lo, algo até aceitável para o ser sem cabeça.
— Olá? Tudo bem?
Ao pronunciar estas palavras, Ron atrai a atenção das criaturas, que se viram para ele, emitindo ruídos estranhos, e avançam em sua direção.
— O que diabos está acontecendo aqui? – grita ele, assustado com essa reação súbita, e sai correndo como um louco na direção do carro, que já está no final desta rua.
Tremendo, ele despeja o combustível de volta no tanque, e raciocina que, com esse nível de neve, não há chances de o carro sequer sair do lugar, pois a borracha dos pneus o fará escorregar. Ele então resolve sacrificá-los para chegar em casa. Usando uma barra metálica pontiaguda retirada do veículo, ele rasga os pneus e os arremessa longe, deixando apenas a jante das rodas em contato com a neve. Os seres cinzentos já estão bem próximos agora. Ele larga o metal, joga a mochila para dentro do carro, pega a escopeta e mira no monstro mais próximo. O disparo pode ser ouvido a vários quilômetros entre os prédios abandonados. A caixa torácica da criatura é completamente destruída, e o resto de seu corpo é arremessado para trás, fazendo uma grande mancha vermelha na neve. Ron entra no carro e toma o rumo do velho porão, onde sua mãe o aguarda.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 10
Ron e Alex agora percorrem uma grande avenida à beira mar. Tudo às escuras, exceto os potentes faróis do veículo e a irreal luz da lua. A viagem decorre em silêncio, até que, ao passar por mais um prédio, Alex sinaliza:
— Ei Ron, você viu? Era um supermercado… Vamos dar uma olhada?
A resposta vem logo em seguida, quando Ron puxa o freio de mão e engata a ré. Ao ver a placa do local, ele, adorador de brincadeiras:
— Já que somos civilizados, vamos parar no ESTACIONAMENTO.
Ambos riem nervosamente ao entrar naquela escuridão completa. Os faróis da XTerra delimitam as sombras de diversos carros abandonados há vários anos. Os dois descem da caminhonete. Ron, já habilidoso, pega sua escopeta no banco de trás, junto com alguns cartuchos extras. Alex, com as amadas submetralhadoras, verifica seu funcionamento, pega um par de lanternas e nenhuma munição sobressalente.
— Ok, façamos o seguinte – diz ela, enquanto joga uma lanterna para Ron – você recolhe o combustível enquanto eu vou lá em cima dar uma olhada.
— Positivo operante, senhorita. Nós estamos mesmo precisando de gasolina.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 11
Alex provavelmente era a pessoa, ainda viva, com as piores lembranças possíveis. Filha única de uma família rica, tudo começara quando ela tinha catorze anos, com a morte suspeita de seus pais, Sarah e Anton Hemingway. O culpado: um tio ganancioso, chamado Winston, que nenhum advogado nem evidência conseguiu colocar atrás das grades, pois nunca encontraram a ligação entre o executor confesso e seu tio
Tio esse que obteve a guarda da garota – e sua fortuna – já que era o único parente que ela ainda tinha. Passaram-se alguns anos com Alex morando na casa de Winston. Para felicidade da garota, eles praticamente não tinham encontros rotineiros. Enquanto Alex dormia, seu tio ficava no escritório, e durante o dia, ele saía para trabalhar, deixando o escritório e seu quarto trancados. Neste período ela, às escondidas, praticava tiro ao alvo com uma velha espingarda de ar comprimido. Alex sempre fora apaixonada por armas, e, desde muito cedo, acumulava conhecimento e prática com elas.
Aos dezoito anos, ela chega à absoluta conclusão de que é odiada por todos os funcionários do lugar. Levava uma vida solitária, na qual se dedicava inteiramente à prática de tiro e a descobrir os segredos da casa. Seu maior achado fora o acesso, através de um alçapão sob sua cama, ao sistema de ventilação central, instalado à custa de SUA herança.
Uma vez dentro dos dutos de ar, ela podia ir a qualquer cômodo da mansão sem ser notada. Ela utilizava esse acesso livre principalmente para ir ao escritório e ao quarto de seu tio, buscando provas incontestáveis de que ele tinha envolvimento com a morte de seus pais.
Em uma dessas visitas, Alex encontrou o que procurava: a verdadeira fita de segurança de sua casa, na noite em que Sarah e Anton foram assassinados. Na versão apresentada no tribunal, a câmera registrava um homem entrando no quarto dos dois enquanto eles dormiam, e então o indivíduo disparava várias vezes seguidas. Na que ela assistia agora, via seu tio chegar até a casa, cumprimentar seus pais, e então, no momento que tiram a atenção de Winston, ele atira e leva os corpos até o quarto, onde, logo em seguida, se apresentava a versão vista na corte. Por isso eles nunca encontravam uma ligação entre o executor e seu tio. Porque ele mesmo os havia executado.
Alex ouve alguém girando a chave na fechadura. Ele chegara antes da hora! Sem tempo para mais nada, ela deixa a fita passando, enquanto desliza de volta para dentro da ventilação. O chão de madeira range sob a massa do homenzarrão quando ele entra no aposento. Ao olhar pelo escritório, logo nota a TV ligada e, ao ver as imagens na tela, entende o que estava ocorrendo segundos antes de sua entrada. Ele se dirige para sua escrivaninha, abre a primeira gaveta e pega um grande revólver Magnun cromado.
Ao ver a arma nas mãos de seu tio, Alex tem um sobressalto, batendo a cabeça no alçapão. Winston ouve o barulho e, de arma em punho, vem em sua direção. Ao abrir a tampa porém, ele vê apenas os pés de Alex, se arrastando em uma curva. Ele dá dois disparos, errando por pouco e abrindo grandes buracos nas placas de alumínio dos dutos de ventilação.
Ao sair, debaixo de sua cama, Alex já pode ouvir os passos de seu tio atravessando o corredor que separa o escritório de seu quarto. Ela corre para o armário, pega sua espingarda e pula para fora da janela no momento exato em que ele abre a porta atirando em todas as direções e esgotando as balas do revólver. Ele vê a janela aberta e Alex cruzando o jardim. Possuído pela raiva, Winston recarrega a arma e mira, mas Alex já está muito além do alcance da potente Magnun. Mesmo assim, ele atira.
Enquanto corre, a garota ouve os tiros e toma sua decisão. “Isso acaba hoje”. Misturando-se em meio aos arbustos ela prepara a mira.
Saindo apressadamente pela porta principal, Winston corre os olhos pelo jardim da propriedade, atirando ao menor sinal de movimento. Então, ele nota, atrás de uma moita próxima, a ponta da camisa de Alex. Se movendo devagar, chega até as costas da garota.
— Te peguei – sussurra Winston, enquanto atira.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 12
Acompanhando o facho de luz da lanterna de Alex com os olhos, Ron espera-a desaparecer numa curva, mergulhando o estacionamento na escuridão completa novamente. Ao invés de ligar sua lanterna, Ron passa alguns instantes parado, até que seus olhos se acostumem com a treva, permitindo-lhe ver relativamente bem. Ele prefere não usar a lanterna como precaução para não atrair nenhuma criatura.
Pegando um galão de vinte litros vazio, uma mangueira e um objeto que lembra um desentupidor de pia no porta-malas da XTerra, ruma para a primeira fileira de carros, para recolher toda a gasolina possível. Ele abre o tanque de um carro usando o desentupidor, que se fixa à tranca e usa pequenas lâminas para serrá-la fora. Então, coloca uma ponta da mangueira no tanque e puxa o ar na outra ponta, com a própria boca, para que o combustível comece a jorrar.
— Odeio essa parte – resmunga para si mesmo, cuspindo a gasolina e colocando a mangueira para derramar dentro do galão.
Repetindo o processo em todos os carros da primeira fila, acumula os vinte primeiros litros. Ele volta, coloca o galão no fundo da caminhonete e pega outro, para enchê-lo também. Se dirigindo para a próxima fileira, ouve passos rápidos logo atrás. Virando-se já com a lanterna ligada, ele não vê nada, mas os ruídos continuam. Ron larga o galão, pega a escopeta a tiracolo, acopla a lanterna a ela e fica em posição de tiro, avançando lentamente em direção ao barulho, que vem do espaço entre dois carros à frente.
Assim que chega até traseira do carro, os sons param. Ele ilumina o local e se depara com uma grande poça de líquido amarelado e odor desagradável. Olhando mais atentamente, ele percebe pegadas no chão, marcadas pelo material mal cheiroso. Ele as segue, até ouvir passos novamente, cruzando a pista que separa as fileiras de automóveis. Jogando o facho de luz nessa direção, ele vê uma silhueta magra saltar sobre um carro. Enquanto acompanha o movimento, a arma emite seu estampido mortal. A criatura, atingida na altura do ombro direito, é arremessada para trás, caindo na traseira aberta de uma caminhonete.
Ron corre na direção do monstro, para confirmar o acerto, porém, ao chegar, não há corpo. Apenas uma enorme quantidade do líquido amarelo misturada a sangue podre. Preocupado, ele volta a sua postura de combate, iluminando os carros ao redor em busca da criatura ferida.
— Que diab… – Ron pára no meio da frase, ao sentir algo pingar viscosamente em seu ombro e braço direitos.
Enquanto força a fechadura para entrar no supermercado, Alex ouve um grito terrível, seguido por um disparo.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 13
Após o estrondo do revólver, um corpo tomba para frente, mas não é o da garota. É o velho jardineiro, usando a camisa de Alex, que agora jaz no chão, maculando o verde brilhante da grama com seu sangue vermelho escuro.
Winston congela.
— Errou, assassino – diz Alex, pronunciando lentamente a última palavra – Adeus.
— Atire! Vamos! – Winston se vira, lentamente, para ela – você não tem coragem – diz ele enquanto levanta a Magnun.
O sussurro da espingarda mal pode ser ouvido. O projétil de chumbo, impelido pelo ar comprimido, atravessa o globo ocular do homem, atingindo parcialmente o lobo frontal do cérebro, causando morte imediata.
Ela pega a camisa de volta do corpo do jardineiro, agora completamente vermelha de sangue, e também a arma do tio. Quando já está próxima do portão, descobre que algum funcionário chamou a polícia por causa dos tiros. Duas viaturas bloqueiam a saída. Há quatro policiais indo em direção à casa, pela trilha demarcada. Um ficara vigiando os carros.
Alex evita a trilha, passando abaixada em meio à vegetação, e retornando à trilha apenas quando já está quase alcançando os carros. O policial assustado com o surgimento súbito da garota ensangüentada, pega o rádio com intuito de pedir reforço para seus colegas, porém, antes de poder falar qualquer coisa no transmissor, este explode, atingido por um balaço de chumbo, saído da espingarda. Alex aponta a Magnun para ele. O guarda ergue as mãos, em sinal desarmado de paz. Alex abaixa sua guarda. Ele pega sua pistola e atira, no entanto, para sorte da garota, a pressa o faz errar. Antes que ele possa novamente puxar o gatilho, a Magnun emite um rugido e o homem é jogado para trás, ferido seriamente no ombro direito, e incapaz de usar sua arma.
Ela entra no carro, liga o motor e acelera pela estrada esburacada de barro. Os outros tiras, atraídos pelo som dos disparos, correm de volta, vêem seu companheiro caído e o carro em fuga. Eles sacam suas armas e tentam atingir o veículo de qualquer forma, descarregando onze balas cada um. De todas, pouquíssimas atingem o alvo, estilhaçando o pára-brisa traseiro, danificando o porta malas e abrindo pequenos furos na lataria. Um dos policiais vai ajudar o ferido, enquanto os outros dois entram na viatura remanescente e partem atrás de Alex.
Alex dirige como nunca dirigiu antes, desesperada e perdida. Há anos desde a última vez em que saíra do terreno da casa. Ela pode ouvir o som das sirenes atrás de si. A estradinha parece ser interminável. Mais disparos atingem o carro, um destes, no pneu. O início da parte asfaltada se aproxima, entrando abruptamente em uma grande rodovia, logo antes de uma ponte sobre um rio vinte metros abaixo. Entrando no asfalto Alex percebe o pneu furado ao tentar desviar-se de um pequeno carro de passeio. Percebe tarde demais.
A colisão é inevitável e catastrófica. O carro de Alex é atingido a grande velocidade pelo outro, na lateral, o que a desestabiliza, fazendo-a capotar três vezes, passando sobre a mureta que impede os carros de caírem no abismo abaixo. A queda dura menos de dois segundos. Seu carro começa a afundar, mas, Alex já não sente nada. Ela ficara inconsciente logo após a colisão.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 14
Alex larga os instrumentos de arrombador e a lanterna, saca as Vz Skorpion e desce correndo para ver o que se passa. Ao chegar no estacionamento ela não avista a lanterna de Ron. Arrependida por não ter trazido a sua, Alex se contenta em ativar a mira laser adaptada de suas armas e vai em direção à Bone Crusher.
No momento em que cruza uma das pistas, ela vê a lanterna de Ron ao longe, ligada, debaixo de um carro. Alex se desloca rapidamente nessa direção, e, ao mesmo tempo, permanece atenta a seus arredores. Quando chega na lanterna, que a alcança, percebe respingos de sangue fresco numa pilastra próxima.
— Ron? Cadê você Ron? Responda! Por favor… Ron?
O som de algo sendo arrastado faz com que ela pare imediatamente, se concentrando em localizar a direção de que vem o som. Duas horas. O som vem da direção duas horas, como num relógio. Passando sobre capôs e tetos de automóveis, Alex se move o mais rápido possível. Ela chega ainda mais perto, conseguindo escutar os gemidos de Ron sendo arrastado. Um estalido metálico sinaliza que as armas estão destravadas. Já correndo em direção ao som e com a mira para frente, Alex enxerga a fonte dos ruídos.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 15
Quando acorda, depois de três meses em coma, Alex descobre que seu tio tinha amigos influentes quando em vida. Ela fora condenada a quarenta anos de prisão em reclusão absoluta, por duplo homicídio culposo, tentativa de homicídio, resistência à prisão, roubo e direção descuidada.
A recuperação de sua saúde é rápida, e ela é logo levada para a Casa de Detenção de Garywood, sendo trancafiada numa cela de 6m², contendo apenas um estrado de ferro a ser usado como cama, uma latrina, e um buraco na parede onde deveria haver uma pia. Todas as paredes têm marcas dos prisioneiros anteriores, que deixaram ali rabiscos, desenhos, e os clássicos traços que marcam a passagem dos anos. Alex tem direito a duas refeições por dia, que lhe são entregues através de uma pequena escotilha na porta. Já acostumada à solidão, ela dedica todo o seu tempo decifrando os riscos nas paredes e escrevendo poesias com uma pequena lasca de pedra.
Sete anos se passam sem que nada mude. Até que, num dia como outro qualquer, ao acordar, Alex se depara com a porta de sua cela aberta. Sem hesitar, ela salta do estrado, passa pela abertura e prossegue pelos corredores estreitos, em busca da saída.
Antes mesmo de deixar o subsolo, ela passa por diversas manchas vermelho escuro nas paredes e chão dos corredores, mas não há nada que indique sua origem. Quase na escada ela vê, sobre a mesa do carcereiro, o molho de chaves deste andar e uma pistola Beretta M9 em meio a inúmeras folhas de papel espalhadas. Ao se aproximar para pegar a arma e as chaves, percebe cápsulas de bala vazias no chão, e uma mão saindo de trás da mesa. Ela chega ainda mais perto. Jazendo no chão, em meio a uma grotesca poça de sangue ainda fresco, há o corpo do carcereiro, aparentando ter sido trespassado diversas vezes por um objeto pontiagudo, como uma faca ou espeto. Horrorizada, Alex recua até esbarrar na parede atrás de si. Ainda com muito medo, ela se aproxima da mesa novamente, dessa vez olhando apenas para a arma. Ela estica a mão e a alcança, juntamente com as chaves.
Subindo o segundo lance de escadas para o andar térreo, ouve um barulho vindo de onde acabara de sair. Na esperança de haver mais alguém lá embaixo, ela volta. Porém, ao chegar à mesa do carcereiro novamente, verifica que o corpo não está mais ali, e há um rastro vermelho descendo o corredor. Seguindo as marcas, ela vira na primeira direita e avista o carcereiro andando, de costas para ela.
— Senhor! Aqui! Posso te aju… – o homem vai ao chão antes que ela possa terminar a frase – vai ficar tudo bem, senhor – continua Alex, enquanto se aproxima – nós vamos para um hospital e… – interrompida por um grunhido bestial do carcereiro, ela paralisa.
O homem começa a se levantar, e, quando está de pé, vira-se para Alex arreganhando os dentes, e parte em sua direção. Assustada, porém com maior controle da situação e reflexos rápidos, ela recua e dispara seis vezes consecutivas, esgotando o pente. A criatura avança mais devagar a cada bala, e a sexta atinge-a exatamente na testa, entre os olhos, impulsionando para trás sua cabeça sem vida. O corpo cai novamente.
Sem munição, Alex corre desabalada de volta para as escadas e sobe a toda velocidade até o térreo. Porém, ao sair pela porta, percebe que não há mais um “piso térreo”… A área é um grande descampado, atulhado com blocos de cimento em pedaços, barras de ferro queimado retorcidas e muita neve cobrindo tudo. Existem também vários corpos espalhados, aparentemente sem vida. Ainda sem parar de correr, Alex passa em meio aos cadáveres, e tropeça numa caixa metálica parcialmente encoberta pela neve. Com a pancada a caixa vira, derramando seu conteúdo: uma lanterna, dois cartuchos de Beretta, um par de algemas e um cassetete. Ela recolhe os objetos, carrega a pistola com a nova munição, e continua em frente, em direção a uma casa de onde se projeta uma fraca iluminação.
Ao chegar à fonte de luz, uma pequena janela, Alex está na parte externa traseira de uma espécie de galpão subterrâneo. Contornando a construção em busca de uma entrada, ela chega até um portão aberto que dá acesso a uma rampa para o subsolo. Próximo ao portão, há um corpo, uma mulher congelada, sentada numa cadeira. Alex pensa em atirar, só por precaução, mas as feições da mulher lhe trazem grande tristeza, como de alguém que morrera completamente abandonado e sem esperanças.
Entrando no porão ela vê diversas peças de automóveis, latarias cortadas e quebradas, engrenagens e inúmeras ferramentas espalhadas pelo chão. Grandes estantes que vão do piso ao teto são os únicos móveis do lugar, abarrotadas com caixas de papelão vazias. Atravessando a galeria de estantes, ela chega até uma pequena porta. Há luz saindo pela fechadura.
Ao atravessar a porta, Alex sente como se voltasse alguns anos no tempo. Uma fraca lâmpada amarela, energizada por uma bateria, ilumina o ambiente. Um velho aquecedor a gasolina faz com que a temperatura seja bastante agradável, beirando os vinte e cinco graus celsius. Há uma grande esteira encostada em uma das paredes cinzentas, e, jogado no canto oposto, um pequeno fogareiro aparentando uso recente.
Embora Alex procure bem, pois está faminta, não consegue encontrar sequer um pão para comer. Ela ouve o barulho do portão se fechando.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 16
A criatura é esquelética, sua pele assume tons que variam do verde escurdo ao amarelo mostarda, com longos braços magros, sendo que um deles está praticamente arrancado do corpo, pendurado apenas por uma tira de carne podre. Pernas musculosas, cabeça pequena, olhos estreitos e uma poderosa mandíbula completam a aparência do monstro. Justamente preso nessa mandíbula é que está Ron. Mais precisamente seu ombro direito, prensado em meio a toneladas de força, perfurado por dentes afiados. A garota mira.
— Atire Alex… Pelo amor dos céus, atire! Não se importe comigo… – sussurra Ron, com suas últimas forças enquanto Alex procura uma mira melhor.
— Você nunca me abandonou, nem eu te abandonei. Não será hoje que irei quebrar a promessa – responde ela, pressionando o gatilho das Skorpions automáticas, que emitem quatro silvos e se calam, juntamente com a criatura.
Quatro furos simetricamente posicionados se abrem na testa do morto vivo, que relaxa seus músculos e cai. A pressão no ombro de Ron se desfaz. Ele se desvencilha da bocarra da criatura, levanta sorrindo e caminha até Alex, abrindo a boca para falar algo. Mas, antes que emita algum som, desaba, inconsciente, sobre ela.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 17
O dia amanhece enquanto Ron dirige de volta. A gasolina acaba a alguns quilômetros de distância do porão. Ele desce do carro, pega sua mochila e a arma, deixando para trás o sistema de comunicação, cujas baterias terminaram há horas. Muitos corpos vagam lentamente em meio à neve. Ignorando-os, Ron corre se desviando daqueles que estão em seu caminho. Após alguns minutos de corrida, as criaturas começam a segui-lo, e as que estão no caminho tentam agarrá-lo. Ele acha que não passa de um movimento coincidente, e continua seu caminho. Mais à frente, uma das criaturas se joga do alto de um prédio, em direção a Ron, que, ao ver o cadáver em queda, pega a arma, mira e atira, jogando o corpo para dentro de uma janela. Ao som do disparo todos os mortos vivos começam a correr em sua direção. Vendo isto, ele corre também, com todas as forças que ainda tem. Faltam apenas algumas curvas até o porão.
— De onde saíram essas coisas? – xinga Ron.
Uma multidão já se formou, marchando atrás do garoto. Ele vira a última curva, ficando de frente para o porão. Parece que as surpresas desagradáveis ainda não terminaram. Perto da entrada, Ron avista uma silhueta, sentada em uma cadeira parcialmente coberta pela neve. Ainda correndo dos seres, Ron subitamente percebe que a pessoa sentada é sua mãe. A pele está roxa, e seus olhos, vidrados no horizonte. Ron agarra o corpo congelado, entra no galpão e puxa a alavanca que fecha a entrada. As criaturas esbarram no portão metálico e começam a golpeá-lo com os pés, mãos e cabeças, mas o obstáculo nem se abala.
Ainda em estado de choque, Ron abraça o corpo rígido da mãe, que morrera esperando por eles. Morrera pois achara que eles não iriam mais voltar. Com a desaceleração de seu ritmo cardíaco, ele se lembra da violenta morte de seu pai, e chora. Ron perdera as duas pessoas mais importantes de sua vida em uma única noite.
Arrasado, ele se dirige para o quartinho onde moravam, no fundo do galpão. Sem saber o que fazer, ele decide partir, ir em busca de outros lugares, outras pessoas.
Ao abrir a porta porém, dá de cara com o cano escuro de uma pistola Beretta 9mm. Ao ouvir os ruídos da entrada de algo no galpão, Alex se preparara para qualquer coisa, exceto para isso. Atônito, Ron pergunta:
— Quem é você, e o que está fazendo aqui?
— Meu nome é Alex, e acabei de chegar, e você? – responde a moça, sem abaixar a arma.
— Eu sou Ron, e, até onde sei, aqui é MINHA CASA!
— SUA casa?
— É!
— Até parece que um garoto como você more aqui sozinho.
— Eu não moro sozinho! Meus pais moram… – ao mencionar seus pais, as lembranças dos dois corpos voltam à sua mente em um turbilhão. Ele senta e começa a chorar novamente.
— Você está bem, garoto? Quer dizer… Ron – indaga Alex, surpresa com aquela reação súbita.
— Eles… eles estão mortos! Os dois! Mortos durante essa noite! Tudo por culpa desse maldito inverno, e… e daquele meteoro!
— Meteoro?
REGISTRO 02, CAPÍTULO 18
Depois de algumas horas de conversa e explicações, Alex ainda não está convencida de que a catástrofe realmente aconteceu.
— Mas, se todos morreram há cinco anos, quem é que levava a comida até minha cela todos os dias? Ou melhor, quem abriu minha cela, me permitindo escapar?
— Eu não faço idéia! Também tenho muitas dúvidas, mas tenho uma certeza. Devemos sair daqui o mais rápido possível.
— Concordo. Mas não me parece muito possível, em vista que há apenas uma forma de parar essas coisas. Eu tenho pouca munição, e apenas uma arma.
— Eu poderia construir um carro para nós, mas, de qualquer forma, teríamos que sair para buscar as peças e obter combustível… Por ora, deixemos nossos problemas de lado, e vamos comer. Você parece faminta!
Ron derrama o conteúdo da mochila sobre a esteira, pegando uma lata de ervilhas e jogando para a garota.
— Obrigada! – diz – eu realmente estava precisando – continua ela, enquanto olha ao redor, procurando um abridor de latas.
— Na caixa atrás de você, logo embaixo dos cobertores – informa ele, como que lendo seus pensamentos.
— Obrigada novamente.
VoltAndo sua atenção para os objetos que estavam na mochila, Ron se depara com a caixa de munição desconhecida.
— Alex, você sabe para quê servem estes?
— Magnun .357 – ela responde, com a boca cheia de ervilhas – onde você os encontrou?
— Num velho armário, junto com meu brinquedinho.
— Ron, você não acha que já está meio velho para brinquedos?
— Não desse tipo – responde Ron sorrindo enquanto pega a escopeta, encostada do lado de fora da porta – Dá uma olhada!
Alex se engasga ao ver o tamanho da arma.
— Uma calibre 12? Uau! Acho que já temos bem mais chances de sair daqui!
— Creio que não… Ela só tem mais três cartuchos.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 19
O ferimento está infectado com a Mattis Imortum. Se Alex não encontrar remédios rápido, Ron estará acabado. Carregando o rapaz inconsciente apoiado em seus ombros, ela volta à porta do mercado. Não se preocupa mais em ser discreta. Pega sua Colt M1911A1 .45 e dá um tiro na fechadura. O impacto é tão poderoso que além de destruir a tranca, arremessa a porta para trás, abrindo-a imediatamente.
O interior da loja é amplo, e o pé direito tem oito metros de altura. A entrada fica próxima dos caixas e da área administrativa – uma pequena construção de dois andares, dentro do próprio mercado – onde se localizava a seção de atendimento ao cliente, os computadores e toda a papelada necessária para a regularização do estabelecimento. As diversas estantes do mercado ainda se encontram abastecidas de produtos, no entanto, a lógica de organização não é facilmente compreensível.
Alex leva Ron até o pequeno anexo administrativo, sobe as escadas e tenta abrir uma porta. Trancada. Impaciente e preocupada com Ron, ela atira novamente, arrancando um enorme fragmento de madeira junto com a trava. O estrondo ecoa nos corredores desertos. A sala contém uma mesa comprida, com alguns computadores, cadeiras espalhadas e armários fixados nas paredes. Empurrando violentamente os computadores para fora da mesa, Alex obtém espaço suficiente para deitar Ron. Depois de fazê-lo, ela revira os armários em busca de remédios, mas não há nenhum.
— Fique aqui enquanto eu procuro algo para colocar em seu braço, ok? Você vai ficar bem, eu prometo – murmura Alex enquanto termina de amarrar seu casaco ao ferimento, improvisando um torniquete para estancar o sangramento.
Ron se lembra das circunstâncias da morte de seu pai. “Pode me esperar aqui… Volto em instantes…” – a voz de Michael ressoa dentro de sua cabeça. As coisas ocorrem da mesma maneira. “Não vai se repetir”. Ele aguarda Alex sair do quarto para se levantar. A dor é muito forte e ele não consegue mover o braço direito. Olhando desapontado para sua escopeta, que ele agora não pode usar, se contenta com a pistola no cós da calça. Ao olhar para seu ombro, tem sérias dúvidas acerca de sua recuperação. O ferimento é profundo, e, apesar do torniquete, bastante sangue ainda escorre. A pele ao redor começa a ficar amarelo esverdeada. Quase desmaiando novamente, junta forças e sai cambaleando pela porta, atrás de Alex. A silhueta da garota se afasta lentamente através do piso inferior, em direção ao lado mais distante do estabelecimento.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 20
Eles saem do pequeno quarto aquecido para tentar encontrar uma saída sem passar pelas criaturas. Ao olhar pelas janelinhas, próximas ao teto, não enxergam nem um morto vivo sequer. Voltam ao quartinho, pegam suas armas e arriscam abrir o portão, prontos para gastar toda a sua munição se necessário. Surpresos, não vêem nem mesmo os corpos que jaziam na neve, momentos atrás.
— Os desgraçados devem ser noturnos… – Alex murmura para si mesma.
— Pelo menos agora temos uma chance – sorri Ron – vamos nos separar. Vou procurar nosso transporte, enquanto você cuida das armas e da defesa, combinado?
— Ok
— Mas isso só a partir de amanhã. Tenho algo importante a fazer – fala Ron, olhando tristemente em direção ao corpo inerte de sua velha mãe no chão da garagem – e eu prefiro fazê-lo sozinho.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 21
Se apoiando totalmente no corrimão, Ron desce lentamente até o piso das prateleiras e vai na mesma direção que Alex. O som dos passos da garota cessa. Ron continua, deixando pequenas gotas de sangue no chão atrás de si. Ele tropeça em sua própria perna e cai pesadamente. Ao se levantar, dá de cara com uma arma conhecida.
— Alex? –pronuncia com dificuldade, antes de apagar.
Quando acorda, o ambiente está claro. Ron está de volta no quarto onde Alex o deitara antes de ele fugir. O ferimento não dói, e ele consegue mexer o braço, apesar de tudo parecer mais lento ao seu redor.
— Já estou curado?
— Infelizmente não. Você está sob efeito de morfina, que eu encontrei numa bolsa de primeiros socorros – responde ela, pensativa e preocupada – Felizmente, encontrei a sala com os ativadores da luz. Não havia eletricidade, então, segui os fios até eles entrarem numa parede. Derrubei-a e encontrei um gerador com algum querosene. Ele deve durar pelas próximas seis horas. Ou seja, sairemos por volta das nove horas, pouco antes do amanhecer.
— Mas… Mas… E meu braço? Isso não pode ficar assim! Está infectado, com certeza! – se exalta Ron, apontando para o próprio braço, que está se tornando arroxeado. Ele se coloca de pé bruscamente e desaba ainda mais rápido.
— Ron! Você não pode se levantar… – ela o coloca der volta sobre a mesa.
— Nós temos que encontrar um remédio, ou morrerei!
— Eu sei! – Alex irrompe em lágrimas – Você acha que eu não estou pensando nisso? Eu sei disso! Eu sei… Mas não encontro uma solução… Não consigo encontrar… Eu não… – as lágrimas escorrem por seu rosto pálido.
Passam-se alguns minutos sem que nenhum dos dois diga nada. O silêncio é interrompido por um estilhaçar de vidros no andar inferior. De sobressalto, os dois pulam e pegam suas armas. Alex pretende pedir a Ron para ficar descansando, mas, ao ver as chamas em seus olhos, sabe que, por mais que tente, não irá convencê-lo. Ao abrir a porta do quarto e olhar para baixo, logo descobrem o vidro quebrado: o da porta. Há cacos espalhados até os caixas. Ambos destravam suas armas e descem.
Mais ruídos. Dessa vez, vindos do fundo da loja.
— Vamos pela direita. Você entra primeiro e eu dou cobertura – diz Ron quando a fonte dos sons está atrás da estante para a qual eles estão olhando.
— Já! – sussurra Alex.
Ao entrar, já fazendo pressão no gatilho, eles não vêem ser algum. Há uma grande bagunça, com latas abertas, derrubadas, sacos rasgados e seu conteúdo derramado, mas, definitivamente, nenhuma criatura. Eles se aproximam dos objetos jogados. No chão notam uma grande mancha de líquido amarelo, igual às da garagem. Em um lampejo, Ron se lembra da criatura atacando-o do teto. Quase instintivamente, ele se vira cento e oitenta graus, levanta o cano da Browning .12 e dispara. Uma criatura é atingida em cheio no peito, sendo arremessada de volta sobre a prateleira, caindo no corredor vizinho e guinchando.
— Como você?…
— Acho que esse ferimento me ensinou algo, apesar de tudo. – Ron a interrompe – Vamos dar uma olhada no corpo.
Eles vão para o outro corredor, mas, ao chegar, não há nem sinal do monstro, nem de seu corpo ou seus ruídos.
— Fique alerta a todas as direções, inclusive o teto – Ron fala, enquanto percorre a estante em busca do alvo.
— Ron. Estou ouvindo algo naquela direção – aponta Alex – É a seção das carnes. Eu passei por lá enquanto procurava os remédios.
— Vamos!
REGISTRO 02, CAPÍTULO 22
Depois de se despedir da mãe, Ron cava a sepultura numa praça do quarteirão vizinho. Na falta de algo mais apropriado, ele envolve o corpo cuidadosamente com um lençol velho e o deposita suavemente no buraco, cobrindo-o de volta com terra e neve. Arranca dois galhos de uma árvore, improvisa uma cruz e a finca na parte mais alta da cova. Deposita alguns objetos em sua base e vai embora, resolver seus novos problemas. Os objetos: o boné que seu pai mais gostava, um buquê de flores plásticas e um envelope com uma carta de despedida.
“Querida mamãe, sempre te amei e nunca irei esquecê-la. Que você e papai descansem em paz para sempre. Nos encontraremos em breve. Beijos e abraços, Ron”
Sentindo-se mais aliviado, ele decide deste momento em diante, empenhar o que resta de sua vida para salvar outras pessoas em situação semelhante à sua. A partir de agora, tudo vale o risco. Ron se dirige para a garagem de um prédio. O portão está trancado e a cerca possui espinhos, por esse motivo ele e seu pai nunca tinham entrado. Pegando um pequeno galho, ele percorre a cerca toda, tocando com o galho em cada uma das barras, sorrindo, quase gargalhando, como uma criança que volta da escola.
Vários minutos se passam. Alex aparece correndo, de armas em punho. Ao ver que Ron é a fonte dos ruídos, ela guarda as pistolas.
— Ron? O que você está fazendo?
— Shh. Ouça! – responde ele sorrindo.
— Não compreendo! – interrompe Alex, depois de o rapaz dar mais duas voltas batendo na cerca.
— Tente novamente! Agora mais devagar – responde ele calmamente enquanto reduz a velocidade das batidas.
Alex se concentra, apesar de achar tudo aquilo ridículo. Quando Ron está na metade de outra volta, ela ouve. Uma batida diferente!
— Espere! Volte uma barra. O som é diferente!
Ron sorri de orelha a orelha.
— Eu sabia que você ia achar.
— Mas, o que isso significa?
— Nossa entrada. Só precisamos quebrá-la.
— Acho que isso deve ajudar – diz Alex, pegando um grande machado que ela carregava pendurado por uma correia que certamente não lhe pertencia.
— Aonde você…
— Digamos que… Meu retorno à prisão foi muito produtivo. Assim que entrarmos eu lhe conto em detalhes e mostro o resto do arsenal.
Logo na primeira machadada a barra se parte.
— Eu já esperava que fosse fácil, mas não TÃO fácil!
— Das duas uma: ou você é mais forte do que eu imaginava, o que eu ainda duvido, ou a barra estava mais frágil do que você esperava – responde Alex, rindo alto e mostrando a barra totalmente enferrujada por dentro.
— Engraçadinha.
Eles passam pela abertura recém criada, entrando no jardim do edifício.
— Vamos nos dividir novamente. Eu vou para a garagem procurar um bom carro, e você… Vai para o quarto de limpeza.
— Como é?
— Achou que só você podia fazer piadas aqui? Eu preciso que você encontre alguns galões, para recolhermos o máximo de combustível possível.
— Ah. Agora sim. Quais são as palavras mágicas?
— Por favor?
Eles se separam sorrindo. Ron vai para as escadas, enquanto Alex vasculha a portaria. Lá ela encontra as chaves para todos os quartos de acesso exclusivo aos funcionários. “Manutenção” e “Limpeza” são as duas chaves que ela pega antes de sair, agora olhando para todas as portas, em busca de sinalização.
Na garagem Ron não enxerga um palmo à sua frente. Um ponto brilhante verde claro é a única coisa visível na escuridão.
— Interruptores fosforescentes – exclama ele, surpreso – nunca achei que poderiam servir para alguma coisa.
Ao pressionar o botão, um gerador é ativado em algum lugar do prédio, emitindo altos rangidos e estalidos metálicos, audíveis no térreo e no subsolo. Depois de alguns instantes, as lâmpadas começam a se acender, iluminando toda a extensão da garagem.
— Oh… Meu… Deus! – Ron não se contém ao ver o que há ao seu redor.
Dezenas de carros em perfeito estado de conservação – a maioria é de luxo – reluzindo à fraca iluminação. Há uma grossa camada de poeira sobre eles, mas não impede o brilho.
Neste meio tempo Alex encontra as portas que tanto procurava. Ambas, lado a lado, em um vão sob a escada que vai para o primeiro andar.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 23
A seção das carnes é composta por um balcão abarrotado de caixas de isopor, embaladas em película transparente. Um par de portas plásticas separa a área refrigerada da de temperatura ambiente e um grande freezer para armazenamento, fechado e desativado. As embalagens contêm uma gosma arroxeada, que deveria ser pedaços de carne no passado. Alex e Ron param e escutam. Os grunhidos vêm de dentro da porta plástica. A garota se prepara para abri-la quando Ron a interrompe com um sussurro.
— Alex, não! Espere. Fique de guarda para o caso de o monstro tentar sair. Vou abrir esse freezer e podemos trancá-lo aí.
— Você está louco? Não mesmo! Acho que a morfina não te fez bem.
— Alex! Por favor! – diz Ron, já abrindo a porta do freezer.
— NÃO! – responde ela severamente, enquanto passa pela porta.
O ambiente está enevoado e frio. Parece que parte da energia do gerador é usada para ativar um poderoso sistema de refrigeração. Um vulto remexe numa pilha de embalagens plásticas à frente. Um disparo ecoa, seguido por um grito de Ron:
— Alex! Não atire!
O vulto levanta-se repentinamente e vira para a garota. Sua arma reluz na fraca iluminação esbranquiçada.
— Por favor, não me mate – a figura diz – Por favor… Eu tenho uma filha…
— Como?
Neste momento, Ron entra no aposento, com um pequeno indivíduo sobre os ombros.
— Aquele é seu pai?
— É! – responde a criança, indo em direção ao vulto, quando Ron a coloca no chão.
— Alguém aqui pode me explicar o que está acontecendo? – questiona Alex, nervosa – De onde vocês saíram?
— Eu encontrei a garotinha quando olhei para dentro daquele freezer, então a criatura apareceu. Foi esse o motivo para o disparo.
— Nós estávamos passando pela avenida e, quando vi as luzes acesas, resolvi entrar para ver o que encontrava – responde o homem desconhecido – A propósito, meu nome é Bill.
— Meu nome é… Carolina – diz a garotinha, corando e balançando os braços.
— Sejam bem vindos Bill e Carol. Posso te chamar de Carol? – responde Ron, observando meigamente a pequena.
— Vamos para nosso quartinho? – Alex interrompe suas divagações.
— Não é necessário. Nós só viemos pegar um pouco de comida.
— Levem o que puderem. Acho que temos de sobra.
— Bill, você tem certeza que não quer ficar? Pelo menos até o amanhecer?
— Não. Prefiro viajar à noite. Meus olhos se tornaram desacostumados à luz. Nós vamos passar o dia numa garagem ou túnel qualquer, nos banqueteando com a nova comida!
— Comida! – Carol repete alegremente, quase pulando.
O efeito da morfina começa a desaparecer, e o ombro de Ron volta a latejar.
— A… A… Al? – é a última coisa que ele consegue pronunciar antes de ficar inconsciente.
— Droga! De novo. Adiantem suas compras enquanto eu cuido dele – Alex aponta para carrinhos de mercado num canto, ao mesmo tempo em que levanta Ron e o apóia em seus braços.
Ela o leva de volta para o quarto, deita-o sobre a mesa e pega outra seringa. No entanto, não é outra dose de morfina. É um poderoso sedativo, que o fará dormir por três ou quatro horas. Com lágrimas nos olhos, ela injeta o líquido no pescoço de Ron.
— Por favor, não me abandone… – murmura, antes de sair.
A gasolina do gerador não dura tanto quanto ela esperava. Ao fechar a porta da saleta, as luzes de toda a loja se apagam novamente. O silêncio reina absoluto, significando que Bill e Carol já partiram. Ao olhar para o lado de fora, nota enormes faróis de um caminhão de mudanças. O veículo buzina duas vezes em despedida e acelera, desaparecendo numa curva.
— Um caminhão? Eles tinham um caminhão? – repete para si mesma, perdendo-se momentaneamente em devaneios – Acho que agora é minha vez de recolher alimentos para viagem.
Ela pega a Browning de Ron como armamento extra, e vai abarrotando carrinhos e mais carrinhos de compras com tudo que consegue alcançar. Quando se aproxima da seção das carnes novamente, vê o corpo inerte do monstro. Fazendo uma análise mais cuidadosa, reconhece a criatura como sendo a mesma que eles mataram no estacionamento. Um braço quase arrancado e quatro furos na testa são as provas definitivas. A barriga da criatura está costurada, como se houvesse sido operada e fechada de volta. Os últimos disparos de Ron atingiram o peitoral do monstro, mas, ali eram facilmente perceptíveis mais cicatrizes de cirurgia.
Enquanto joga a comida dos carrinhos para dentro do fundo da Bone Crusher, o chão começa a tremer levemente, porém, aumentando de intensidade.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 24
Pegando as chaves no bolso, Alex destranca as portas. Quando estende a mão para a maçaneta “Manutenção” um alto rangido metálico é ouvido, seguido pelo desaparecimento da energia, que os coloca de volta no escuro.
— Droga – resmungam os dois, quase simultaneamente apesar da distância.
A garota pega uma lanterna dentro de sua mochila, que contém os espólios da prisão, e a acende, abrindo a porta. Dentro do pequeno aposento há alguns sacos de cimento, amontoados a um canto, e grandes estantes contendo diversos frascos de produtos químicos, ferramentas, removedores de tinta, espátulas, pincéis, rolos, cordas e uma caixa com centenas de azulejos e lascas de cerâmica.
— Nada!
Ela chuta a porta, que esbarra em algo encostado na parede e volta. A garota se esquiva desajeitadamente e a porta bate. Ao iluminar o local em que a porta esbarrara, Alex vê um grande galão esverdeado com uma etiqueta plástica. “Querosene”. Exultante, sai em disparada à procura de Ron. No caminho para a escada ela passa por uma pequena porta, perto da qual a temperatura estava bem mais alta e um filete de fumaça sai pela fechadura e frestas do chão.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 25
Assim que as luzes da garagem se apagaram Ron começa a caminhar para frente, até se esbarrar em um carro. Ele tenta abrir a porta. Trancada. Sem pensar duas vezes, o rapaz quebra a janela com uma cotovelada, disparando o alarme, que não tem importância. Entrando no carro ele puxa os fios sob o volante, tateando em busca dos corretos para fazer uma ligação direta. Enquanto suas mãos se ocupam com os pequenos circuitos elétricos, percorre a garagem com os olhos, parando, estupefato, ao se deparar com um par de pequenas esferas verdes, brilhando na escuridão. Ainda encarando aqueles olhos, ele encontra os fios. Desviando sua atenção por apenas um instante, a fim de certificar-se de que pegara os fios certos, o brilho desaparece subitamente.
O ronco do motor se faz ouvir em toda a garagem. Alex irrompe pela porta da escada, e Ron, quase imediatamente, avista os olhos se movendo em direção à garota. Acelerando ao máximo na terceira marcha rumo ao brilho, ele atinge algo. Um corpo é arremessado violentamente contra a parede ao lado de Alex. Um ser de pele amarelada, braços finos e pernas musculosas jaz no chão, distorcido de forma impossível, com inúmeros ossos quebrados e deslocados. Morto. Com certeza.
— Rápido! Temos que sair daqui! – a garota entra agilmente no carro, com o galão de querosene.
— Concordo plenamente. Voltaremos outra vez para pegar o combustível.
— Não haverá outra vez! O quarto do gerador estava em chamas! É apenas uma questão de instantes até que esse lugar vá pelos ares, então, ACELERA!
Atravessando o portão de ferro enegrecido com o veículo, Ron xinga por todas as mossas, riscos e arranhões que terá que consertar. Eles ouvem um baque surdo.
— Lá se foi o gerador. Apenas mais alguns segundos para que o diesel armazenado exploda!
REGISTRO 02, CAPÍTULO 26
Ron se levanta de um pulo ao sentir o chão tremer. Seu ombro está curado, não há nem sinal do ferimento. Correndo e gritando de felicidade, ele procura a amiga.
— Alex! Alex! Onde você está? Meu braço está bom! Alex!
Ao ouvir o som de tiros vindos do exterior da loja, Ron sai pela porta quebrada e vê Alex disparando contra algo. O alvo está fora do alcance visual de Ron, atrás de um pequeno prédio de três andares, com pouco mais de vinte metros de altura. O chão treme cada vez mais fortemente. Alex pára de atirar e vai em direção a Ron, a toda velocidade.
— Ron! Fuja! Fuja!
Confuso, ele fica parado na entrada da loja. Os tremores cessam. Ouve-se um rápido bater de asas, e um inseto gigantesco – quase do tamanho do prédio – surge nos ares, aterrissando pesadamente atrás de Alex.
— Ron! Socorro!
Ele corre em direção ao besouro, atirando o mais rápido e melhor que conseguia com a escopeta. A criatura levanta uma enorme garra, descendo violentamente sobre a garota e trespassando-a.
— Solte-a! – Ron ordena enquanto recarrega e atira ainda mais agressivamente.
— Socorro! Me salve! Ron! Ron, não me deixe morrer! – ela grita desesperada, ainda viva, atravessada pela garra.
O besouro faz um movimento rápido e a arremessa longe, cortada ao meio pelo serrilhado da garra.
— NÃO! – o rapaz grita no momento em que a criatura o atinge em cheio no crânio, transformando seu grito num suspiro mudo.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 27
— Acorda Ron! Acorda! Algo está acontecendo lá fora! Temos que ir! – Alex bate levemente algumas vezes em seu rosto.
Ele se levanta de supetão. Os tremores se repetem a intervalos regulares, e o som de disparos reverbera no ar.
— Alex? Mas… Você tinha…
— Era só um pesadelo Ron… Agora vamos. Espere eu te dar mais morfina. A última dose.
— Já são nove horas? – pergunta ele, enquanto suas pupilas se dilatam, adaptando-se ao escuro.
— Não.
— E onde estão as luzes?
— O combustível acabou antes do previsto – ela joga a seringa usada num canto – Vamos lá! O carro já está ligado, e entupido de comida.
Eles juntam todo o equipamento espalhado, pegam a bolsa de primeiros socorros e rumam para o veículo. Ao ligar a Xterra, Ron olha para seu braço. O nível de infecção é crítico, o membro está completamente roxo pela gangrena.
— Acho que teremos que dirigir em equipe.
— Não entendi…
— Meu braço. Não há condições de eu guiar e mudar o câmbio, então, quando eu falar o número, você passa a marcha, sem hesitar.
— Certo. Agora eu entendi.
— Só para ressaltar. Não tenha dúvidas, apenas passe, por mais absurdo que soe.
— Certo – responde ela, respirando fundo – Certo, certo.
O ronco do motor faz Ron sentir-se melhor. O veículo está realmente abarrotado com todo tipo de alimento, estoque suficiente para, no mínimo, seis meses.O rapaz acelera, deixando a garagem e voltando para a pista.
O som dos tremores aumenta, juntamente como os disparos. Eles também ouvem o ronco de mais carros, que se aproximam. Três grandes caminhonetes de cabine simples surgem numa virada, ruas atrás de Ron e Alex. Dentro da caçamba de cada uma, duas pessoas, de pé, atiram incessantemente em algo grande, que vem logo atrás.
— Engate a primeira – ordena Ron.
Alex obedece prontamente. Ele acelera, distanciando-se dos veículos.
— Segunda.
— Ron, para onde você está indo?
— Alex, lembra do que você prometeu? Apenas confie em mim.
— Ok – ela passa a marcha.
— Terceira.
— Quarta.
O carro já passa de 160km/h.
— Agora sim – o rapaz murmura consigo mesmo, com um sorriso no rosto – Puxe o freio de mão e reverta para a primeira.
— Nós vamos morrer! – Alex sussurra enquanto puxa o freio de mão e muda de marcha.
Ron gira o volante, numa guinada violenta. Beirando uma capotagem devido à altura do veículo, e evitando o acidente graças ao excesso de peso, o carro vira na direção da qual os outros vêm, ainda atirando. A velocidade da Xterra fica em 100km/h.
— Rápido, coloque de volta na quarta, e pegue nossas armas. Está na hora de um pouco de tiro ao alvo – ele pressiona um botão no painel, que abre o teto solar do carro.
Alex coloca a escopeta Browning no colo de Ron, e pega suas Skorpions Vz. O garoto se ajeita no banco, estabilizando o volante com os joelhos e escancarando sua janela.
— E eu que pensei que conhecia todas as suas loucuras – ri Alex, enquanto assiste Ron se debruçar para fora da janela, com o gatilho preparado e apoiando o carregador da arma no retrovisor, para que, a cada disparo, bastasse um puxão para trás que uma nova bala seria inserida na câmara.
— Você ainda não viu nada garota – grita ele, contra o vento, em resposta quando ela sai pelo teto solar – Nosso alvo é bem grandinho… Errar vai ser difícil, mas um acerto de verdade será bem complicado.
Poucos metros atrás das três caminhonetes, algo se desloca. Aparentando ser constituído por enormes pedaços de construções vivas, unidos em uma forma humanóide. O que faz a ligação entre o concreto, metal e pedras é um grotesco e complexo sistema venoso-muscular, composto por grossas artérias e bolhas vermelhas, que se infiltram e espalham-se pelos poros do material, dando-lhe a capacidade de movimento. No lugar da cabeça, a dezoito metros de altura, há um pequeno automóvel de passeio, completamente envolto em veias e artérias, deixando somente o pára-brisa a mostra. Através deste, existem dois grandes olhos amarelados que se movem de forma assustadora.
As balas ricocheteiam no cimento sem surtir qualquer efeito no quadro geral. Ocasionalmente, um tiro acertava uma das artérias, que se rasga, jorrando toneladas de sangue, tingindo as estruturas de vermelho escuro, quase marrom. Esses vazamentos faziam o gigante parar por instantes. Enquanto fechava o ferimento, arremessava pedaços de si mesmo contra os veículos atacantes.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 28
Chegando ao abrigo, cobertos de neve e poeira de cimento da explosão, eles começam a se preparar para a viagem definitiva.
Preparativos esses que duram quase um mês. Alex vasculha todos os apartamentos e casas dos bairros próximos, juntando armas e munição suficientes para equipar um pequeno exército. O carro está terminado. Foram instalados dois tanques de combustíveis diferentes, álcool e gasolina, além de um cilindro de gás natural. Grades e espinhos protegem a frente e os faróis traseiros. A lataria foi totalmente reforçada, ganhando outra camada de metal além da primeira, e um buraco foi aberto no topo, como um teto solar, porém, com uma Thompson .45 instalada do lado de fora, assemelhando-se a antigos jipes da Segunda Guerra Mundial. Os bancos traseiros foram completamente removidos, juntamente com o sistema de som, dando lugar a pequenas prateleiras de armazenamento de comida e armamentos para acesso rápido. Alex reclamou bastante dessa modificação, e até tentou discutir. Ron, porém, terminou a conversa com – “É você quem vai dirigir?”. Os retrovisores foram soldados diretamente à lataria, perdendo as partes plásticas quebráveis. Por último, uma enorme chapa de alumínio foi também soldada sob o veículo, para que nada pudesse sequer tentar atacá-los por baixo.
Quando terminaram de carregar o veículo com todo o equipamento, armas, munição, comida e água, que entram no carro e sentam-se, Ron pensa alto:
— Acho que deveríamos fazer uma espécie de promessa…
— Como?
— Só estava pensando alto, mas, realmente acho que devemos fazer uma promessa, um juramento, entende?
— Sim, mas, prometendo o que?
— Sei lá… Não nos separarmos, ou, sempre ajudar um ao outro, ou… Ah, sabe, esse tipo de coisa.
— Ok. Eu prometo.
— Promete o que?
— O que você acabou de falar, seu bobo.
— Ah claro. Que parte do que eu disse?
— Tudo, é lógico.
— Então… Eu… Prometo também!
— Isso não está me parecendo muito sério…
O rapaz ri.
— É… Realmente… Mas, saiba que levarei a sério.
— Que bom, porque eu também!
REGISTRO 02, CAPÍTULO 29
Acelerando cada vez mais, em direção ao gigante, e mirando com a escopeta, Ron prende a respiração, esquecendo o que acontece em seus arredores e concentrando-se somente no alvo. Os outros carros passam por eles na forma de borrões prateados, indo na outra direção. Um tilintar de cápsulas vazias é o sinal de que a garota começou a atirar. Devido à sua grande habilidade e prática, Alex dispara curtas rajadas, com cinco ou seis balas, a fim de manter as submetralhadoras estáveis. Na quarta rajada ela atinge uma das bolhas, promovendo uma chuva sangrenta. Eles estão a menos de vinte metros de distância da criatura, que pára momentaneamente para conter o vazamento. Ron sorri. Seus disparos serão ainda mais fáceis. Alex volta para dentro do carro, recarregando as armas.
— Já acertei a primeira! Agora quero ver você!
— Então… Assista.
A escopeta é projetada para trás rapidamente três vezes. O rapaz dispara quando eles já estão praticamente sob a criatura, passando entre suas pernas. As três cargas dispersas de calibre 12 atravessam o ar a quatrocentos metros por segundo e se chocam com bolhas – uma para cada cartucho – o que faz com que a XTerra seja banhada em sangue assim que eles passam pela criatura.
— Isso não vale! – ri Alex, impressionada pela seqüência e se escondendo dentro do carro.
Ele não responde, jogando de volta a Browning para dentro do carro e colocando a mão boa sobre o volante.
— Alex, puxe o freio de mão, AGORA!
Ela leva alguns instantes para entender o motivo, e obedece. Por questão de centímetros eles não são atingidos por um enorme bloco de concreto, arremessado violentamente pelo gigante.
O carro desliza lateralmente sobre o sangue espalhado pela pista, totalmente fora de controle e continuando a rodar. Durante o breve segundo em que ficam virados de frente para as outras caminhonetes, avistam um lampejo no ar, seguido por um fino rastro de fumaça. Um míssil. Cercados pelos perigos, Alex e Ron não sabem o que fazem: abaixam-se para protegerem-se dos fragmentos da criatura que explodirá, ou se pulam para a montanha de alimentos, que diminuirá os ferimentos no caso de o carro capotar. Pelo retrovisor Ron vê o míssil se aproximar da cabeçorra da criatura. Sem pensar sequer mais um instante, ele grita:
— Alex!! Se abaixe!!
Ela fala algo, mas a explosão sufoca suas palavras completamente. Ron lê seus lábios. “Meu Deus! Nós vamos morrer!”.
A cabeça do monstro desaparece num clarão amarelo. O carro que funcionava como armadura é impulsionado pelo ar e cai, rolando descontroladamente, poucos metros adiante de Ron e Alex. Eles atingirão o pedaço de metal retorcido. É inevitável. Quinze metros. A Bone Crusher sai da poça de sangue, fazendo com que os freios voltem a funcionar, parando-a imediatamente. O corpo da criatura começa a se desmontar. As artérias estouram. Em menos de dez segundos, o que era um ser tão gigantesco não passa de uma montanha de escombros recoberta de sangue amarronzado.
— Conseguimos Ron! Estamos vivos! VIVOS!
Ao olhar para o rapaz, porém, Alex pára de comemorar. Ele está absolutamente pálido, inconsciente. O efeito da morfina passara.
A garota o puxa para o banco, e troca de lugar com ele, assumindo o controle do veículo. Às pressas, ela dirige em direção aos outros carros, que ainda estão parados no mesmo lugar. Algumas pessoas desceram e comemoram a vitória. Com uma freada brusca, ela pára em frente a eles e desce do carro também, sendo recebida com elogios, abraços e uma taça de champagne.
— Parem! Me ouçam! Meu amigo está seriamente ferido! Ele quem estava dirigindo. Não eu! Preciso levá-lo a um médico. Urgente!
Os festejos cessam imediatamente, todos voltam a seus carros. Um homem aparentando seus quarenta e cinco anos se aproxima de Alex.
— Ok filha, vamos. Siga os outros. Eu vou com você na XTerra.
— Cer… Certo – ela gagueja, surpresa pelo socorro imediato – Vamos! Creio que temos pouco tempo.
Todos acionam os motores e partem – Alex os seguindo.
— Quer dizer que seu amigo aqui é quem estava dirigindo daquele jeito? – indaga o homem ao ver o estado de Ron inconsciente, sobre o banco.
— Exato… Ele sempre gostou de dirigir. Eu só assumia o controle do carro quando ele sentia sono.
— Qual seu nome, filha?
— Alex Hemingway, senhor. E você?
— Carl Hudson, piloto do exército. Ou melhor, ex-piloto de um ex-exército.
— É… Mesmo depois de tanto tempo, ainda não consegui me acostumar com isso… Mas, quantos de vocês existem?
— Quantos de nós? Sobreviventes, ou nesse grupo?
— Nesse grupo. Me desculpe mas, o médico está muito longe?
— Nosso grupo tem por volta de duzentas pessoas, porém, apenas umas trinta são combatentes. As outras apenas se dedicam a procurar alimentos, aprimorar nossas tecnologias e, claro, há os médicos para tratar os feridos. Não se preocupe. Em menos de cinco minutos estaremos na base.
— Base? Vocês moram em uma base?
— Exatamente. Como somos muitos, achamos mais seguro nos estabelecermos em um lugar fixo, ao invés de ficar rodando pelo mundo, como nômades. Ocasionalmente organizamos grandes expedições a cidades vizinhas, em busca de mais alimentos e armas, além de quaisquer outros tipos de suprimentos.
— Como você já deve ter visto, eu e Ron temos um grande estoque recém adquirido de alimentos no fundo do carro.
— Eu estava observando. Se vocês quiserem negociá-lo, podem conseguir bons equipamentos, ou até mesmo um outro veículo.
— Mas, como vamos comer se vendermos o alimento?
— Ah, me desculpe. Sempre esqueço que você nunca viu uma base. Os líderes organizam a alimentação de todos, trocando equipamentos por comida. Pronto. É aqui. Vire à direita.
Já afastados do centro da cidade, cruzando uma estrada, Alex vê uma placa no local onde deve virar. Eles passam por baixo de um enorme bloco de pedra equilibrado precariamente sobre as ruínas de uma casa e adentram uma caverna. Em seu interior, os túneis são iluminados por potentes holofotes, posicionados a intervalos de oitenta metros. Guardas armados percorrem alguns trechos mais abertos, como pequenas clareiras, se comunicando ininterruptamente através de rádios.
Depois de percorrer aproximadamente dois quilômetros sob o solo eles chegam a um grande portão metálico.
— Buzine cinco vezes rapidamente, dê uma pausa e buzine mais duas – diz Carl enquanto ela segue o ritmo – Sabemos que é um código simples, mas temos certeza de que os mortos vivos não conseguem reproduzi-lo.
O portão é aberto lentamente por quatro soldados. A pesada XTerra entra acelerando e pára logo na frente de um pequeno prédio totalmente branco com uma enorme cruz pintada com tinta vermelha. Alex e Carl carregam Ron através das portas de vidro e o deitam sobre uma maca vazia.
— John! Rápido! Temos um garoto gravemente ferido! Rápido! Temos um garoto gravemente ferido!
Um homem surge atrás de um leito. Vestido num jaleco branco e com inúmeros instrumentos médicos pendurados, ele se aproxima. Olhando o ferimento com frieza, ele pergunta:
— Isso foi uma mordida, certo?
— É… – responde Alex, nervosa.
— De que criatura?
— Era algo bem magro, exceto as pernas, que eram muito fortes. Sua pele era amarelada e…
— Não quero uma descrição, quero um nome.
— Nome? Vocês dão nomes a essas coisas?
— Um Caçador – Carl interrompe a garota.
— Há quanto tempo?
— Sete ou oito horas.
— Você tem certeza? Ele já deveria estar morto nesse tempo.
— Eu injetei três doses de morfina.
— Foi uma boa coisa. Isso nos dá mais algum tempo. Agora, peço que vocês se retirem – diz John levando-os até a porta.
Ao deixar o edifício é que Alex tem tempo para observar o ambiente ao seu redor. Do chão ao teto da caverna há um vão de mais de vinte metros, que possibilita a existência de alguns prédios, como o hospital ao qual eles estão em frente. A luz branco-azulada proveniente da iluminação artificial é intensa, incomodando seus olhos. As ruas são largas, permitindo passagem para dois carros lado a lado, estes são bastante comuns, equipados com grades, armas e serras, deslocando-se incessantemente de um lado para outro num movimento parcialmente ordenado.
— Todos esses carros rodando é algo comum por aqui? – questiona Alex distraidamente.
— Não. É que hoje chegaram duas expedições que dávamos por mortas, devido a um atraso de duas semanas na previsão de retorno. E parte uma outra, de duração estimada de uma semana.
Continuando sua análise da cidade ela percebe que todos os prédios têm muitas janelas – “provavelmente com função defensiva, no caso de uma invasão” – ela pensa consigo mesma. Além disso, todas as edificações são muito parecidas.
— São alojamentos simples – Carl corta sua linha de raciocínio – Cada cidadão tem apenas sua cama e um armário para guardar todos os seus pertences. Os refeitórios ficam no Setor 01, seguidos pelas oficinas, que são o número 02. Ambos ficam na seção Norte. A Administração e Estratégia ficam a Leste. São os prédios mais antigos, construídos logo nos primeiros anos após a catástrofe. Já o CR – Centro de Recuperação – ou, vulgarmente, hospital, é a construção mais recente e moderna. Os últimos detalhes só foram terminados há duas semanas e meia. Em algumas das cavernas das redondezas tentamos começar plantações para ficarmos mais independentes das perigosas expedições em busca de alimentos – ele dá uma pequena pausa, olhando para Alex – Ok, vou parar de conversar e levá-la até um dos alojamentos. Você está completamente exausta – completa, guiando-a até o carro.
Ela agradece com um leve e abatido meneio de cabeça, enquanto fecha a porta.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 30
Luz. Muita luz. Ron não consegue enxergar absolutamente nada. As palavras de Alex ainda martelam em sua mente. “Nós vamos morrer!”.
O branco decai para tons amarelo avermelhados. Uma explosão. Com sua visão turva, Ron distingue um objeto grande como um carro se aproximando deles, que deslizam por uma pista sem resistência. Então tudo pára.
Uma eternidade se passa.
Ele ouve muitas vozes, que vão se distanciando gradativamente até desaparecerem.
“Alguém me ajude!”. Ele tenta falar, mas sua garganta não obedece.
Mais luzes e vozes. “Estamos perdendo-o”. Um homem jovem se debruça sobre ele. “Você vai ficar bem”. Ron sente algo sendo injetado em seu braço ferido e tudo fica escuro novamente.
REGISTRO 02, CAPÍTULO 31
Ao ouvir uma buzina em sua porta, Alex levanta-se de sobressalto. Olhando ao redor ela lembra que está num dos alojamentos da vila subterrânea. A buzina soa novamente.
— Um momento! – grita a garota de dentro do quarto enquanto pega uma roupa que estava no armário – Já estou indo!
— Se apresse Bela Adormecida! Seu amigo está acordando – diz um Carl animado entrando no quarto – Já chega de dormir!
Alex se põe rapidamente atrás de um biombo para vestir a calça jeans surrada e a velha camiseta branca de algodão.
— Mas eu dormi tão pouco… – boceja ela.
— Pouco? Dois dias é pouco tempo para você?
— DOIS DIAS? – ela coloca a cabeça por cima da estrutura de metal e pano, com uma expressão surpresa.
— Sim, sim. Agora vamos. O rapaz acordará em poucos minutos.
Ao sair, Alex fica surpresa com o que está diante de seus olhos. A Bone Crusher, lavada e polida. Brilhando sob a luz artificial da caverna. Ron era mesmo um artista, e essa caminhonete, sua obra prima.
— Depois você vai ter muito tempo para admirar a caminhonete. Vamos.
Os dois entram no carro e Carl dirige rapidamente até o hospital. Dentro do veículo, Alex dá pela ausência do estoque de alimentos.
— Onde está nossa comida?
— Eu sabia que você ia perguntar! Não se preocupe. Seu “estoque” está a salvo.
O ex-piloto pára diante das portas de vidro do edifício. Ao entrar, são recebidos prontamente pelo rapaz que Carl chamara de John.
— Ei, Hudson – um homem com seus quarenta anos chama ao passar pela porta, logo atrás deles – Temos um problema de registro nas garagens, você pode resolvê-lo.
— Nos veremos em breve – ele sussurra para Alex, já se dirigindo para a saída.
— John Matches, prazer em conhecê-la – diz o médico num aperto de mão.
— Alex Hemingway, mas me chame de Alex apenas. O prazer é meu.
— Bem, Alex, seu amigo estava gravemente ferido. Foi um procedimento bastante complicado, mas conseguimos salvá-lo. Infelizmente, o braço original já estava muito infectado e não pôde ser mantido. Os danos eram irrecuperáveis.
— Quê? Vocês arrancaram o braço dele?
— “Arrancar” não é o termo apropriado. “Amputar” é melhor. Mas, ele está bem. Consegui uma prótese que se adaptou razoavelmente bem.
— Uma prótese?! Como ele vai dirigir agora?
— Normalmente, oras!
— Normalmente?! Como ele vai dirigir normalmente usando um braço plástico?
— Quê? Ah, claro. Agora compreendo sua confusão e preocupação. Desde a catástrofe, os equipamentos de prótese foram bastante desenvolvidos. O novo braço é igual ao original, tem a mesma mobilidade, agilidade. É capaz de realizar os mesmos movimentos de antes; exceto pelo fato de que é feito de metal e pode ser removido para troca, manutenção ou upgrade.
Eles entram numa pequena sala com vários leitos ocupados. Próximo à parede mais distante, Alex reconhece a silhueta do rapaz sentado sobre a cama.
Ela corre em sua direção. Ao vê-la, Ron abre um enorme sorriso. Eles se abraçam longamente. Ao sentir a mão metálica em seu ombro, Alex tem um calafrio, mas o ignora.
— Tudo vai ficar bem – ela fala para si mesma e para Ron ao mesmo tempo – Tudo vai ficar bem…
FIM DO REGISTRO 02.